A falar (Português) é que a gente se entende...

Incrementar o uso da Língua Portuguesa

Nome:
Localização: Carnaxide, Lisboa, Portugal

terça-feira, janeiro 31, 2006

Balada Da Neve

Batem leve, levemente, Como quem chama por mim. Será chuva? Será gente? Gente não é, certamente E a chuva não bate assim. É talvez a ventania: Mas há pouco, há poucochinho, Nem uma agulha bulia Na quieta melancolia Dos pinheiros do caminho... Quem bate, assim, levemente, Com tão estranha leveza, Que mal se ouve, mal se sente? Não é chuva, nem é gente, Nem é vento com certeza. Fui ver. A neve caía Do azul cinzento do céu, Branca e leve, branca e fria... -Há quanto tempo a não via! E que saudades, Deus meu! Olho-a através da vidraça. Pôs tudo da cor do linho, Passa gente e, quando passa, Os passos imprime e traça Na brancura do caminho... Fico olhando esses sinais Da pobre gente que avança, E noto, por entre os mais, Os traços miniaturais Duns pezitos de criança... E descalcinhos, doridos... A neve deixa inda vê-los, Primeiro, bem definidos, Depois, em sulcos compridos, Porque não podia erguê-los!... Que quem já é pecador Sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, Porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!... E uma infinita tristeza, Uma funda turbação Entra em mim, fica em mim presa. Cai neve na Natureza - e cai no meu coração. - - - - - - Augusto Gil

sábado, janeiro 21, 2006

A Primeira Reflexão

É, manifestamente, uma apreciação intemporal do nosso país e do nosso povo. Arriscaria afirmar que essa intemporalidade se foi constituindo, ao longo do processo histórico, como o alicerce principal para o pobre povo e para a sua desgraçada iletrícia. Dentre as características da Lusitana estirpe academicamente classificada como "o povo", ressalta inevitavelmente o apurado sentido de crítica social e política. A crítica social espraia-se desde o corte na farpela do vizinho do lado até domínios bem mais vastos, que, sobretudo na imprensa, visam atingir toda uma sociedade. É perceptível uma constante nessa actividades críticas: vê-se claramente o que está mal. E em regra, fica-se por aí. Com um encolher de ombros, ou um esgar amargo. Porque "o povo" vê e sente o que está mal - mas não lhe compete a ele mudar as coisas. Para isso, há os outros, a gente da capital, os letrados, os senhores doutores e senhores engenheiros, prudentemente acolitados por uma consideravel horda de outros senhores entendidos em leis. Estes últimos reputados peritos na montagem, implementação e manutenção de clivagens sociais. Para esta dramática clivagem subliminar, o 25 de Abril revelou-se de todo impotente. Tanto quanto me foi dado viver o processo, por volta do 25 de Novembro já se anunciavam no horizonte as cores ambíguas de uma marcha à ré. E daí, foi um passo para o re-escalonamento da sociedade Portuguesa: a nova burguesia emergente do processo tratou pressurosamente da construção dos novos "degraus sociais" - e para situações de especial melindre, foi mesmo criada legislação de embraiagem entre quem convive com os núcleos do poder e quem existe longe deles. Veja-se, em tal relação, o descalabro do sistema nacional de ensino. Um ensino regular, cuidado e bem controlado pelo Estado, constituiria o maior remédio para a tal iletrícia castradora do povo, os seus efeitos atenuariam eficazmente as diferenças adquiridas em razão do nascimento e das carências materiais familiares. A criança e o jovem teriam, com eles e ao longo do seu percurso pedagógico, atenção, empenho e cuidado por parte do Estado - o caminho certo para se poder almejar um melhor futuro, com melhores cidadãos. Mas não. Não foi isso que vimos, desde os dias que se seguiram àquela promissora manhã de Abril. O que vimos foi o subtil, mas determinado abandonar das rédeas do ensino. Repito, subtil mas determinado. Na sombra, trabalhou-se no sentido de, sem notoriedade mas com eficácia, aprofundar ainda mais o fosso entre "o povo" e a classe orbitadora do poder. Convenhamos em que esta iletrícia tem mantido muitas dinastias de governantes à tona d'água durante muito mais tempo do que eles conseguiriam manter-se, se tivessem na margem, a julgá-los, um povo sem aspas, um povo liberto e iluminado pela luz do conhecimento - não necessariamente um conhecimento académico, tantas vezes castrante de vôos arrojados, mas um conhecimento escolar sólido, prático e duradouro. Diria, um conhecimento anti-aldrabões. Em qualquer café ou bar de bairro se poderá constatar o que acima se deixou. As conversas (...ou os monólogos na falta de interlocutor fiável), apenas afloram as novidades políticas, para de imediato resvalarem, sem retorno, para a gravidade anunciada da inflamação do menisco de um qualquer avançado-centro, ou para as desastrosas sequelas de uma blenorragia mal curada de um guarda-redes. E então sim, haverá calorosos e aprofundados comentários até ao final da tarde. O fosso foi reposto, tornaram-no maior, multiplicaram as armadilhas e os obstáculos, "o povo" mantem-se no lugar que lhe compete e conserva o estigma das aspas. Posto isto, vamos a mais umas eleiçõezitas. Não é para lugar de importância, mas que importa? "O povo" já foi injectado com a adrenalina bastante para o acto. E, claro... mais vale "o povo" votar para tudo ficar na mesma, do que "o povo" decidir que é chegado o momento de não votar, de sacudir as aspas e voltar revolucionariamente a uma primeira forma. Só que, para isso, "o povo" precisava de descontentes entre os orbitadores do poder, em número e qualidade bastantes para acumular carga e acender o rastilho. E desses, temo-o, já não os há... A única diferença que lobrigo entre as burguesias das épocas Salazarista e Caetanista e a de agora é que as outras se presumiam de élite, tomaram o Paraíso como certo e cairam em desleixo para com a suas estruturas de apoio. Esta nova burguesia arrivista sabe bem que é nova,sabe que é arrivista, sabe que é inimitavelmente ignorante e despudorada e sabe que o que interessa é aderir e prosseguir com o sistema vigente. Porque só o sistema vigente os mantem de carro certo e casa posta, com ordenado e adicionais e com portas e janelas abertas para comer o que mais vier "do povo" que afirmam servir. Posto isto, "meu povo",.. vamos a votar e a voltar para casa de seguida. Para ver que novo folhetim presidencial o futuro lhes reserva. Não tenham receio. Podem estar certos de que ficará tudo na mesma. - - - Victor Mota da Silva

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Apelo à Reflexão

"....... Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no sistema representativo, perdoa-me o obrigar-te a assistir a uma cena que faz subir a cor ao rosto de quem, como nós, abençoa os sacrifícios por cujo preço nossos pais nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo, na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa tutela de um homem, revestido de diretos impiamente chamados divinos, contra os quais o instinto e a razão igualmente se revoltam. A cena, porém, humilhante como é, não envolve a mínima censura à excelência do sistema; mas apenas aos que nos quarenta anos que ele quase tem de vida entre nós, não souberam ou não quiseram ainda fazer compreender ao povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar. Depois das nossas lutas civís, já muitas crianças se fizeram homens; se a escola fosse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores com perfeita consciência dos seus direitos civis. O atrazo e ignorância deles, contristando, somente devem impelir os homens de intenções sinceras e puras a aplicar os esforços de inteligência e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e para acordar a consciência desta entidade social. Era o Sr. Joãozinho das Perdizes à frente da sua freguesia, disse eu. E é justamente este o espectáculo humilhante de que falava. Tendes visto um guardador de cabras à frente do seu rebanho, conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças daquele regimento quadrúpede? Pois vistes o mais perfeito simile da cena que se presenciava agora no adro da igreja matriz. O povo, o povo soberano, que naquele dia tinha nas mãos o ceptro da sua soberania, não era menos dócil do que os irracionais que recordámos. O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava; quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era quando mais vergava a cabeça sob o peso que estes lhe assentavam. Não é semelhante esta força inconsciente do povo à do boi robusto e válido, que uma criança dirige e subjuga? Forte como ele, como ele dócil, como ele laborioso, como ele útil, não vê que a mesma força que emprega no trabalho lhe poderia servir para repelir o jugo. Ou quando o vê, é quando o desespero e a fúria o cegam e o impelem a revoltas tremendas. Mas o povo de Pinchões, o povo do Sr.Joãozinho, estava muito longe desses excessos. O morgado vinha, como já disse, à frente. ......... Atrás vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres, mas todos com o olhar tímido e estúpido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer; se ele parava a cumprimentar um amigo, paravam todos com ele; a direcção que tomava, tomavam-na todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo, segundo a velocidade que ele dava aos seus; se ria, sorriam; se praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou à porta da igreja. O morgado passou revista à sua tropa, à qual deu instruções. Os homens, com os cabelos para diante dos olhos, os braços estendidos e a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento e conservaram-se enfileirados até nova ordem do Sr.Joãozinho. Pareciam envergonhados de serem precisos a alguém. No bolso de cada um destes homens havia um oitavo de papel almaço dobrado, no qual estava escrito um nome; um nome de um homem que eles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um deles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral, respondia "presente" ; aproximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquele papel e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um peso que o oprimia. Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance daquele acto que acabavam de executar, não sabiam dizê-lo; se lhes perguntassem o nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das sua liberdades, a mesma ignorância; se lhes propusessem a resignação do direito de votar, aceitariam com júbilo; se, finalmente, lhes dissessem que naquele dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do país, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiânça própria dos ignorantes. Inocente povo! Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómodo degrau. ........." (A Mogadinha dos Canaviais - Júlio Dinis)
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Neste caso de paralaxismo são focados os aspectos de carneirismo, de seguidismo e de subserviência a que podemos (mas não devemos...) estar sujeitos. Antes do dia 25 de Abril de 1974, quando ainda não estavam abertas “as portas que abril abriu”, poetizadas por Manuel Alegre, não havia escrutínio (se se pode chamar isso...) que não contivesse milhares de votos de mortos e abstencionistas, colocados nas urnas por indivíduos de grande baixesa (talvez a palavra seja forte de mais, talvez ganhassem dinheiro para comprar comida para os filhos, não sei...) filiados na Acção Nacional ou Legião, ou outros organismos que tais... Nessa altura eram os regedores, os párocos, os grandes agricultores, etc. (os caudilhos...), que obrigavam os cidadãos a uma opção política, por todos os meios que tinham ao seu dispôr, nomeadamente “coação”; o povo não ligava aos direitos que tinha, ou não tinha consciência deles, e ajudava a manter o status-quo que ia beneficiando sempre os mesmos. Depois de “as portas estarem abertas” esse hábito diminuiu drásticamente (e felizmente...), sendo que hoje temos total liberdade de voto, embora perto de 60% dos eleitores portugueses ainda continue a pensar: “quero que se lixem todos, tão sacanas são uns como outros...”. Mas, mesmo em democracia, não se pense que tudo “corre sobre rodas”; não podemos pensar que todos os ocupantes de cargos políticos estão na “cadeira” porque foram lá colocados pelo povo soberano; não julguemos que eles vão sempre trabalhar no sentido de nos melhorar a vida...; não nos esqueçamos do seguinte: - 40% de eleitores portugueses não é o mesmo que 40% de portugueses; - A disciplina de voto dentro dos partidos obriga a que os deputados votem segundo a orientação da direcção dos mesmos, e não em consciência; - A possibilidade de ficarem nos cargos “ad-eternum” subjaz quase sempre (ou sempre...) a uma manipulação interna sub-rectícia (pois estamos em democracia...), de modo a perpetuar a ocupação dos mesmos; - O sobrepujar de regalias e dinheiros para os munícipes da área representada pelo “eleito”, obsta a que se acautele o bem de todos; - As perguntas para os referendos são cozinhadas por acordos de gabinete entre partidos; além disso são apresentadas de uma forma oblíqua, devendo muito à clareza, não contemplando a triste iletrícia do nosso povo. - etc., etc. Assim sendo, um paralaxismo popular existe quando o povo (todo o povo, e não só os eleitores) descura todas estas nuances da governação, não dando grande importância a estes problemas; este procedimento distorce a análise do ambiente que nos rodeia, pois os governantes podem continuar a fazer o que bem entenderem, sempre almofadados com esta máxima: “fomos eleitos pelo povo – trabalhamos para o povo”, e não aquilo a que temos direito como cidadãos. E nós continuamos virtual e inconscientemente convencidos disso... Paralaxe

quinta-feira, janeiro 19, 2006

"Porque o oceano quando quer, transforma qualquer barco em escaler"

............. E, o Cacique, Porque era homem alto E espadaúdo, De porte e modos agigantados, Olhou o mar por todos os lados E não divisou navios Ou barcos destroçados, Porque o mar, quando se rebela, Ofusca o brilho da mais brilhante estrela E, à sua volta, destroi e devora tudo. Os segredos, O estranho Guardava escondidos Entre mistérios e medos, No sono e no sonho dormidos Na cama da areia batida No areal da praia desconhecida. Aguardou Que acordasse E com ele falasse Ou tentasse, Em suma, Embora soubesse Mas não o dissesse, Que ninguém fala se não sabe O falar de quem não entende E, por não falar coisa alguma, Toda a conversa suspende. E, porque o sol se escondia Num horizonte perdido, O náufrago acordou de vez E, com um sorriso de alegria, Pensou e disse : - Sou português ! E o índio não entendia. Mas, na expectativa do confronto, Rogou que tudo repetisse E falasse tudo de novo E, outra vez, E, de pronto, O náufrago não se contradisse E repetiu e disse : - Sou português ! E o índio não entendia. Foi quando a filha, Sorrindo, Retornou à vereda, Que era estrada e trilha, Agora, com ares de alameda, Donde saíra para adentrar a mata E voltar, linda e bela, Com a orquídea, colhida, De que fora à cata, Na mata virgem da floresta Onde a abelha o mel requesta, Os animais e os pássaros e as plantas e as flores Fazem corte à natureza Exuberante Que enaltece A beleza Luxuriante Que recende do mato E enlouquece. Saltitando, Com réstias de sol Afagando o seu regaço, Exalando odores Da terra dadivosa, Sobraçando flores - A orquídea e a rosa Que a mesma coisa são, Carregando amores Ocultos no coração, Estendeu o braço E alceou a mão E deu o decisivo passo Naquele caminho que foi estrada e rua E, no abraço, Que o náufrago enlaçou, Expontaneamente E, por vontade sua, Disse e exclamou : - Sou tua ! Esta troca de alianças Selou destinos, Criou raças, Renasceu esperanças, Abriu caminhos, Lastreou rastros, Firmou pegadas indeléveis E teve por testemunho, Com escritura Lavrada de próprio punho, O mar, a terra, o céu, A mata virgem da floresta E tudo aconteceu Num dia que não se soube Mas que houve, Numa hora que não se ouviu Mas que existiu, Num templo a céu aberto, Não importa onde e qual seja Mas era mais amplo Que a mais ampla igreja. E foi assim que neste grandioso palco A céu aberto e ao relento Surgiu o primeiro casamento, O primeiro enlace humano, No lado de cá do mar-oceano, Sem ressalva ou qualquer rasura Conforme lavrado ficou Na mais antiga escritura. .............. In "O Silêncio Do Mar Salgado" Vasco dos Santos

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Soneto XX

Andam os homens vivos sempre mortos Iguais às coisas mortas que morreram E, mesmo assim, tão poucos entenderam O percorrer caminhos sempre tortos. Gastam-se a navegar por tantos portos Onde sonhos deixaram, pereceram Porque ousaram viver e não viveram, Carregando utopias como abortos. E, depois, porque morto o seu destino, Perdido, ao abandono, nessa estrada, Sem deixar qualquer rastro, nem pegada, O vazio dum sonho perigoso Que tanto andou c'o a alma esfarrapada E tudo o que encontrou resume o nada. ------- In "Carmen" Vasco dos Santos

terça-feira, janeiro 17, 2006

Autobiografia

Nasceu em S.Martinho de Anta, Trás-os-Montes. Casado. Altura : 1,77 m. Magro como um espeto. Perfil de contrabandista espanhol. Médico. Anda que se desunha. Fuma, sobretudo quando está com amigos ou quando escreve. Gostava de ser pintor e chegou mesmo a pintar um auto-retrato, que atirou ao mar, no Portinho da Arrábida. Vai muito ao cinema e ri-se perdidamente com os desenhos animados. Só ajudou uma vez a mulher a enxugar a louça, e há dez anos que lhe mata o bicho do ouvido com essa avaria. Na sua biblioteca, pequena porque não cabem mais livros na exígua casa da Estrada da Beira, em Coimbra, onde mora, contém o essencial das principais leituras do mundo. Em pintura moderna admira Picasso, Siqueiros, Orozco e Portinari. Tira o chapéu a Euclides da Cunha e Machado de Assis. Gosta de música, particularmente de Bach. Mas do que gosta a valer, é de calcorrear os montes do seu Douro transmontano e os pauis dos campos do Mondego à caça de perdizes e de narcejas. Nunca fez uma tratantice a um colega de letras. Em compensação, têm-lhe feito muitas. Entre os autores que venera : Dostoievski, Proust, Cervantes, Unamuno e Melville. É contra os caçadores de autógrafos, contra os álbuns, contra a publicidade. O contra é mesmo o seu forte. Gosta da solidão, e preza muito quem lha respeita. Não acredita em fantasmas. Anda sempre a morrer, e não há ninguém que gaste mais energia. Se pudesse recomeçar a vida gostaria de ser mais poeta ainda. Um dos seus títulos de glória é ter passado a adolescência no Brasil (Leopoldina Minas). Vive pelos nervos. Não há ninguém mais amigo dos seus amigos, e tão mal compreendido por eles. A arte para ele não é uma ambição : é um destino. A sua terra é para ele como para uma planta : sítio de deitar raízes. Tinha 20 anos quando escreveu o primeiro livro, que se chama Ansiedade. Poetas brasileiros que admira : Manuel Bandeira, Cecília, Ledo Iva. Romancistas brasileiros que admira : Graciliano, Lins do Rego e Jorge Amado. Gosta dos deuses pagãos, a quem tem cantado nas suas Odes. Mas não conta com eles para o dia da morte, que teme como uma noite sem madrugada. ............ in "Miguel Torga - Fotobiografia"

Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas...

Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas... E logo minha Mãe : - Ouves, rapaz ? - Ouço, sim senhora. Largava tudo, punha a velha saca de lona a tiracolo, de maneira que o lírio roxo ficasse voltado para fora, procurava a boina e saía. No quinteiro, parava, a inventariar o bornal. A lousa, o livro de leitura da quarta, o caderno de problemas, a aritmética, a caneta, o lápis, a borracha e os regrões. Não faltava nada. Podia seguir. Subia a quelha, atravessava a Eiró sob a copa do negrilho, cumprimentava o sr. Arnaldo, sempre de plantão nos coberto, e diante da loja das Pintas já levava a fralda de fora. - Anda cá, desinfeliz ! Trangalhadanças e desleixado, punha-lhes os créditos de costureiras pelas ruas da armagura. A mais velha metia-me a camisa para dentro, endireitava a cruz dos suspensórios, e a caminhada continuava. A escola, ao fundo do povo, tinha mimosas à roda. Em frente, passava a estrada de macadame, há anos em reparação, que vinha do Porto e seguia até Bragança. Ladeada de montes de brita, arsenal inesgotável e sempre à mão nas corridas à pedrada aos de Anta, era por ela que o Canca, empoleirado na moto, aparecia e desaparecia a cem à hora, numa nuvem de poeira. - Lá vai o diabo a cavalo no pai ! gritávamos da esplanada do velho casarão rectangular, de um só piso, que servia também de habitação ao mestre, na parte de trás. Com janelas rasgadas a toda a volta, que dum lado deixavam ver o Marão ao longe, muito azul no verão e muito branco no inverno, mal se conhecia que em tempos fora caiado. Na frontaria, entre dois moirões a pino, bandeava-se a sineta. - Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas... - Se as tem, tira-lhas... Se as tem, tira-lhas... Se as tem, tira-lhas... respondia, quando o vento soprava de feição, a de Fermentões. Entrava-se pela porta transversa, porque a outra, a principal, sempre com editais pregados a avisar os recrutas da data das incorporações e os lavradores do prazo dos manifestos, dava para o salão nobre onde o senhor professor fazia os casamentos. Uma das testemunhas obrigatórias era o ti Manuel Serralheiro, minhoto, que sabia jogar o pau. Deitava-se no chão, punha os três filhos a malharem-lhe em cima, zurzia-os, e levantava-se no meio das bordoadas sem a mais pequena beliscadura. Tinha a oficina mesmo ali ao pé e, por comodidade, chamavam-lhe a ele. Assistia à cerimónia de chapéu na mão, muito compenetrado, e assinava no fim, solenemente, como se fosse o sacristão do Registo Civil. O mestre, encabado nos socos abertos e abafado no varino de surrobeco, sempre atido ao venha a nós, recebia-os conforme a pingadeira. - O senhor passou bem ? - Olá, seu pardal ! Ainda agora ? - Trouxe uma cesta de batatas, que já entreguei à senhora Marquinhas, e demorei-me um migalho... - Bem, bem... Amanhã vê se desembelinhas essas pernas. Quando a dúzia de ovos tardava, ou o fumeiro parecia esquecido, ele próprio lembrava a falta. E até os mais pobres apareciam de saquitel ao ombro. Mas havia dar, e dar... E o tom de acolhimento variava. - E tu, meu figurão ? - Fui prender a burra... - A burra tem as costas largas ! E tinha. Escarrapachado nela, todo eu era uma aleluia pela veiga fora, a entoar de fio a pavio a história rimada do João Soldado, que paralisava o Marreta, moído de trabalho nos Três Bicos. Parava o enchadão, encostava-se ao cabo, e ficava maravilhado a admirar os versos e a memória do recitador.
Era uma vez um rapaz Bem nascido e mal falado...
- Queres vir ganhar o dia, a cantar ? perguntava-me de brincadeira, quando lhe passava em frente. - Não senhor. Tenho de ir para a escola. - Pois é pena, porque te pagava bem ! O mestre é que não queria saber de devaneios. - Por hoje, as coisas ficam assim. Mas volta a repetir a façanha, e verás o que te acontece ! Sentava-me na bancada da frente, à esquerda do meu companheiro, o Jerónimo. Num instante, estava pronto. O senhor Botelho erguia-se então da cadeira, descia o estrado, e ordenava em tom solene : - Papel de trinta e cinco linhas. Ditado ! A esta palavra, a sala ficava silenciosa. Havia em todos, pequenos e grandes, um sagrado respeito pelo ditado e pelos alunos que o faziam. Enquanto ele durava, claro. O senhor professor pigarreava, a limpar a garganta do cataro de fumador, e principiava, depois de repetir em voz alta Ditado : - O calor dilata os corpos... Era a hora recolhida da escola. A ninguém apetecia ir lá fora mijar ou satisfazer qualquer outra necessidade. Os da primeira soletravam o bê-à-bá de boca fechada, e quem já sabia contas, fazia contas. O mestre, encostado à secretária, o livro na mão esquerda, a cana-da-índia na direita, continuava : - O calor, vírgula; a luz, vírgula; o som, vírgula; são agentes físicos. Ponto. Fí-si-cos... Já se não usa o ph, como lhes tenho ensinado. Há ainda certos autores que o empregam, mas só por caturrice... De facto, o senhor Botelho percebera que o Júlio Fraga, naquele levar o rabo da caneta à boca, naquele olhar fixamente o tecto, matutava no ph. - A física é uma ciência... Prestem atenção : ciência ! Lembrem-se dos acentos... E continuava a ditar e a adivinhar os erros e as dificuldades de cada um. ............. A Criação do Mundo - O Primeiro Dia Miguel Torga ( 12 / 08 / 1907 - 17 / 01 / 1995 )  

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Concurso Literário Em Língua Portuguesa

A Federação das Associações Portuguesas de França (FAPF) organiza todos os anos um concurso literário destinado aos alunos dos cursos de língua portuguesa. Este ano, está em curso o “XV° Concurso Literário” (edição 2006). Este concurso tem vindo a ganhar, ano após ano, uma grande aceitação no meio escolar e um reconhecimento cada vez maior por parte da administração portuguesa em França, das famílias, do movimento associativo português e o número de alunos tem aumentado regularmente. Os documentos (a nota explicativa, as modalidades, os temas e o regulamento) são enviados directamente aos docentes de língua portuguesa, por intermédio das associações locais e da Embaixada de Portugal em França (via a Coordenação Geral do Ensino). O júri (composto de dirigentes associativos, de personalidades ligadas ao mundo cultural e educativo, e de professores de língua portuguesa) delibera e remete prémios aos 25 melhores trabalhos apresentados pelos alunos do ensino primário e secundário numa festa anual para as crianças. Esta realização (actualmente em curso) culminará no Domingo 18 de Junho 2006, na cidade de Courbevoie (sala das festas, 7 boulevard Aristide Briand), periferia oeste da cidade de Paris. Neste dia, está previsto um grande espectáculo para os alunos e famílias, no final do qual serão distribuídos os prémios aos 25 melhores trabalhos apresentados. Entre danças modernas e folclore infantil das associações, este ano teremos também actuação de cantares tradicionais portugueses para os mais novos. Um colóquio e exposições serão consagrados à língua portuguesa. Aproveita-se, nessa semana, para organizar nos locais da Associação Cultural Portuguesa de Courbevoie-la Garenne (ACPCG), filíada à FAPF, exposições e conferências relativas ao tema e ao ensino do português em França. Os objectivos deste concurso anual são de ordem pedagógica e sócio-cultural, para promover a nossa língua e cultura, procurar estabelecer elos de ligação entre as diferentes escolas, cursos de português, associações portuguesas, docentes, e outros actores do ensino. Esta acção tem por objectivo afirmar a existência e a vitalidade da língua portuguesa, dar-lhe mais visibilidade na sociedade francesa, constituindo um meio suplementar de valorização dos trabalhos realizados em língua portuguesa. José MACHADO Presidente da Federação das Associações Portuguesas de França (FAPF) Conselheiro das Comunidades Portuguesas - - - - - - Para mais informações, contactar : Federação das Associações Portuguesas de França (FAPF) 109 boulevard Henri Barbusse l (F) 78800 HOUILLES l France Telf. : [+33] (0)8.71.24.43.82 l Fax : [+33] (0)1.47.94.19.08 info@fapf.org l www.fapf.org