A falar (Português) é que a gente se entende...

Incrementar o uso da Língua Portuguesa

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Localização: Carnaxide, Lisboa, Portugal

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Apelo à Reflexão

"....... Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no sistema representativo, perdoa-me o obrigar-te a assistir a uma cena que faz subir a cor ao rosto de quem, como nós, abençoa os sacrifícios por cujo preço nossos pais nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo, na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa tutela de um homem, revestido de diretos impiamente chamados divinos, contra os quais o instinto e a razão igualmente se revoltam. A cena, porém, humilhante como é, não envolve a mínima censura à excelência do sistema; mas apenas aos que nos quarenta anos que ele quase tem de vida entre nós, não souberam ou não quiseram ainda fazer compreender ao povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar. Depois das nossas lutas civís, já muitas crianças se fizeram homens; se a escola fosse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores com perfeita consciência dos seus direitos civis. O atrazo e ignorância deles, contristando, somente devem impelir os homens de intenções sinceras e puras a aplicar os esforços de inteligência e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e para acordar a consciência desta entidade social. Era o Sr. Joãozinho das Perdizes à frente da sua freguesia, disse eu. E é justamente este o espectáculo humilhante de que falava. Tendes visto um guardador de cabras à frente do seu rebanho, conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças daquele regimento quadrúpede? Pois vistes o mais perfeito simile da cena que se presenciava agora no adro da igreja matriz. O povo, o povo soberano, que naquele dia tinha nas mãos o ceptro da sua soberania, não era menos dócil do que os irracionais que recordámos. O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava; quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era quando mais vergava a cabeça sob o peso que estes lhe assentavam. Não é semelhante esta força inconsciente do povo à do boi robusto e válido, que uma criança dirige e subjuga? Forte como ele, como ele dócil, como ele laborioso, como ele útil, não vê que a mesma força que emprega no trabalho lhe poderia servir para repelir o jugo. Ou quando o vê, é quando o desespero e a fúria o cegam e o impelem a revoltas tremendas. Mas o povo de Pinchões, o povo do Sr.Joãozinho, estava muito longe desses excessos. O morgado vinha, como já disse, à frente. ......... Atrás vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres, mas todos com o olhar tímido e estúpido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer; se ele parava a cumprimentar um amigo, paravam todos com ele; a direcção que tomava, tomavam-na todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo, segundo a velocidade que ele dava aos seus; se ria, sorriam; se praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou à porta da igreja. O morgado passou revista à sua tropa, à qual deu instruções. Os homens, com os cabelos para diante dos olhos, os braços estendidos e a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento e conservaram-se enfileirados até nova ordem do Sr.Joãozinho. Pareciam envergonhados de serem precisos a alguém. No bolso de cada um destes homens havia um oitavo de papel almaço dobrado, no qual estava escrito um nome; um nome de um homem que eles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um deles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral, respondia "presente" ; aproximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquele papel e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um peso que o oprimia. Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance daquele acto que acabavam de executar, não sabiam dizê-lo; se lhes perguntassem o nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das sua liberdades, a mesma ignorância; se lhes propusessem a resignação do direito de votar, aceitariam com júbilo; se, finalmente, lhes dissessem que naquele dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do país, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiânça própria dos ignorantes. Inocente povo! Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómodo degrau. ........." (A Mogadinha dos Canaviais - Júlio Dinis)
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Neste caso de paralaxismo são focados os aspectos de carneirismo, de seguidismo e de subserviência a que podemos (mas não devemos...) estar sujeitos. Antes do dia 25 de Abril de 1974, quando ainda não estavam abertas “as portas que abril abriu”, poetizadas por Manuel Alegre, não havia escrutínio (se se pode chamar isso...) que não contivesse milhares de votos de mortos e abstencionistas, colocados nas urnas por indivíduos de grande baixesa (talvez a palavra seja forte de mais, talvez ganhassem dinheiro para comprar comida para os filhos, não sei...) filiados na Acção Nacional ou Legião, ou outros organismos que tais... Nessa altura eram os regedores, os párocos, os grandes agricultores, etc. (os caudilhos...), que obrigavam os cidadãos a uma opção política, por todos os meios que tinham ao seu dispôr, nomeadamente “coação”; o povo não ligava aos direitos que tinha, ou não tinha consciência deles, e ajudava a manter o status-quo que ia beneficiando sempre os mesmos. Depois de “as portas estarem abertas” esse hábito diminuiu drásticamente (e felizmente...), sendo que hoje temos total liberdade de voto, embora perto de 60% dos eleitores portugueses ainda continue a pensar: “quero que se lixem todos, tão sacanas são uns como outros...”. Mas, mesmo em democracia, não se pense que tudo “corre sobre rodas”; não podemos pensar que todos os ocupantes de cargos políticos estão na “cadeira” porque foram lá colocados pelo povo soberano; não julguemos que eles vão sempre trabalhar no sentido de nos melhorar a vida...; não nos esqueçamos do seguinte: - 40% de eleitores portugueses não é o mesmo que 40% de portugueses; - A disciplina de voto dentro dos partidos obriga a que os deputados votem segundo a orientação da direcção dos mesmos, e não em consciência; - A possibilidade de ficarem nos cargos “ad-eternum” subjaz quase sempre (ou sempre...) a uma manipulação interna sub-rectícia (pois estamos em democracia...), de modo a perpetuar a ocupação dos mesmos; - O sobrepujar de regalias e dinheiros para os munícipes da área representada pelo “eleito”, obsta a que se acautele o bem de todos; - As perguntas para os referendos são cozinhadas por acordos de gabinete entre partidos; além disso são apresentadas de uma forma oblíqua, devendo muito à clareza, não contemplando a triste iletrícia do nosso povo. - etc., etc. Assim sendo, um paralaxismo popular existe quando o povo (todo o povo, e não só os eleitores) descura todas estas nuances da governação, não dando grande importância a estes problemas; este procedimento distorce a análise do ambiente que nos rodeia, pois os governantes podem continuar a fazer o que bem entenderem, sempre almofadados com esta máxima: “fomos eleitos pelo povo – trabalhamos para o povo”, e não aquilo a que temos direito como cidadãos. E nós continuamos virtual e inconscientemente convencidos disso... Paralaxe