Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas...
Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas...
E logo minha Mãe :
- Ouves, rapaz ?
- Ouço, sim senhora.
Largava tudo, punha a velha saca de lona a tiracolo, de maneira que o lírio roxo ficasse voltado para fora, procurava a boina e saía.
No quinteiro, parava, a inventariar o bornal. A lousa, o livro de leitura da quarta, o caderno de problemas, a aritmética, a caneta, o lápis, a borracha e os regrões. Não faltava nada. Podia seguir.
Subia a quelha, atravessava a Eiró sob a copa do negrilho, cumprimentava o sr. Arnaldo, sempre de plantão nos coberto, e diante da loja das Pintas já levava a fralda de fora.
- Anda cá, desinfeliz !
Trangalhadanças e desleixado, punha-lhes os créditos de costureiras pelas ruas da armagura.
A mais velha metia-me a camisa para dentro, endireitava a cruz dos suspensórios, e a caminhada continuava.
A escola, ao fundo do povo, tinha mimosas à roda. Em frente, passava a estrada de macadame, há anos em reparação, que vinha do Porto e seguia até Bragança. Ladeada de montes de brita, arsenal inesgotável e sempre à mão nas corridas à pedrada aos de Anta, era por ela que o Canca, empoleirado na moto, aparecia e desaparecia a cem à hora, numa nuvem de poeira.
- Lá vai o diabo a cavalo no pai ! gritávamos da esplanada do velho casarão rectangular, de um só piso, que servia também de habitação ao mestre, na parte de trás. Com janelas rasgadas a toda a volta, que dum lado deixavam ver o Marão ao longe, muito azul no verão e muito branco no inverno, mal se conhecia que em tempos fora caiado. Na frontaria, entre dois moirões a pino, bandeava-se a sineta.
- Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas...
- Se as tem, tira-lhas... Se as tem, tira-lhas... Se as tem, tira-lhas... respondia, quando o vento soprava de feição, a de Fermentões.
Entrava-se pela porta transversa, porque a outra, a principal, sempre com editais pregados a avisar os recrutas da data das incorporações e os lavradores do prazo dos manifestos, dava para o salão nobre onde o senhor professor fazia os casamentos. Uma das testemunhas obrigatórias era o ti Manuel Serralheiro, minhoto, que sabia jogar o pau. Deitava-se no chão, punha os três filhos a malharem-lhe em cima, zurzia-os, e levantava-se no meio das bordoadas sem a mais pequena beliscadura. Tinha a oficina mesmo ali ao pé e, por comodidade, chamavam-lhe a ele. Assistia à cerimónia de chapéu na mão, muito compenetrado, e assinava no fim, solenemente, como se fosse o sacristão do Registo Civil.
O mestre, encabado nos socos abertos e abafado no varino de surrobeco, sempre atido ao venha a nós, recebia-os conforme a pingadeira.
- O senhor passou bem ?
- Olá, seu pardal ! Ainda agora ?
- Trouxe uma cesta de batatas, que já entreguei à senhora Marquinhas, e demorei-me um migalho...
- Bem, bem... Amanhã vê se desembelinhas essas pernas.
Quando a dúzia de ovos tardava, ou o fumeiro parecia esquecido, ele próprio lembrava a falta. E até os mais pobres apareciam de saquitel ao ombro. Mas havia dar, e dar... E o tom de acolhimento variava.
- E tu, meu figurão ?
- Fui prender a burra...
- A burra tem as costas largas !
E tinha. Escarrapachado nela, todo eu era uma aleluia pela veiga fora, a entoar de fio a pavio a história rimada do João Soldado, que paralisava o Marreta, moído de trabalho nos Três Bicos. Parava o enchadão, encostava-se ao cabo, e ficava maravilhado a admirar os versos e a memória do recitador.
Era uma vez um rapaz
Bem nascido e mal falado...
- Queres vir ganhar o dia, a cantar ? perguntava-me de brincadeira, quando lhe passava em frente.
- Não senhor. Tenho de ir para a escola.
- Pois é pena, porque te pagava bem !
O mestre é que não queria saber de devaneios.
- Por hoje, as coisas ficam assim. Mas volta a repetir a façanha, e verás o que te acontece !
Sentava-me na bancada da frente, à esquerda do meu companheiro, o Jerónimo. Num instante, estava pronto. O senhor Botelho erguia-se então da cadeira, descia o estrado, e ordenava em tom solene :
- Papel de trinta e cinco linhas. Ditado !
A esta palavra, a sala ficava silenciosa. Havia em todos, pequenos e grandes, um sagrado respeito pelo ditado e pelos alunos que o faziam. Enquanto ele durava, claro.
O senhor professor pigarreava, a limpar a garganta do cataro de fumador, e principiava, depois de repetir em voz alta Ditado :
- O calor dilata os corpos...
Era a hora recolhida da escola. A ninguém apetecia ir lá fora mijar ou satisfazer qualquer outra necessidade. Os da primeira soletravam o bê-à-bá de boca fechada, e quem já sabia contas, fazia contas.
O mestre, encostado à secretária, o livro na mão esquerda, a cana-da-índia na direita, continuava :
- O calor, vírgula; a luz, vírgula; o som, vírgula; são agentes físicos. Ponto. Fí-si-cos... Já se não usa o ph, como lhes tenho ensinado. Há ainda certos autores que o empregam, mas só por caturrice...
De facto, o senhor Botelho percebera que o Júlio Fraga, naquele levar o rabo da caneta à boca, naquele olhar fixamente o tecto, matutava no ph.
- A física é uma ciência... Prestem atenção : ciência ! Lembrem-se dos acentos...
E continuava a ditar e a adivinhar os erros e as dificuldades de cada um.
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A Criação do Mundo - O Primeiro Dia
Miguel Torga
( 12 / 08 / 1907 - 17 / 01 / 1995 )
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