A República Literária e a Lusofonia
Sinopse
A leitura da bibliografia recente sobre a lusofonia, produzida em Portugal, permite afirmar que não existe uma noção comum para os integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
As notícias sobre esta matéria, regularmente difundidas pela comunicação social, as conclusões de congressos, simpósios e encontros lusófonos, e mesmo a experiência quotidiana pessoal confirmam esta observação, podendo concluir que a lusofonia é um conceito em construção e um espaço de relações a desenvolver.
Se quisermos dar um futuro ao nosso passado comum, o modelo de relações e a sua posta em prática deverá ser comumente discutido e aplicado por todos os países que o integram.
A história cultural da Europa oferece na República das Letras um exemplo para a lusofonia, entendida como República Literária em português. Surgida no último renascentismo -em grande parte, como consequência desta etapa-, no contexto das guerras de religião do século XVI, simultaneamente entre o público e do privado, realizando o ideal da unidade e fraternidade das pessoas, em rigorosa crítica do estado absolutista e a sociedade de classes, prolongou-se até meados do século XVIII, em que o iluminismo logrou transformar a cultura e as nações.
Ainda depois dessa altura histórica, a sua continuidade foi garantida pela permanência dos valores que representou. No seu seio, e entorno ao latim como língua comum, produziu-se o humanismo vulgar (e, dentro deste, a gramaticalização das línguas vulgares), nasceu uma forte consciência europeia e criaram-se as literaturas modernas, até à chegada dos movimentos nacionalistas que organizaram a Europa contemporânea.
Longe do saudosismo por uma antiguidade idealizada, o conhecimento da nossa história cultural pode fornecer alguns exemplos notáveis que podem ajudar a pensar a lusofonia do presente.
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2. A lusofonia presente
Para além da distância sociológica e política que a história determina, o maior contraste entre a República Literária latina e a lusofonia é que, enquanto aquela era promovida, e desenvolvida por indivíduos organizados com relativa independência dos estados, nesta, a maior parte das iniciativas pertence aos governos.
O mais ambicioso destes projetos é a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. O exercício habitual nos artigos de opinião sobre a CPLP é a reflexão sobre a sua unidade e sentido, em comparação com a francofonia, a hispanofonia, a Commonwealth, ou outros espaços e organizações multinacionais constituídos durante o século XX.
O senso comum diz-nos que, nas antigas metrópoles, a reflexão sobre o passado colonial resulta mais fácil e acertada quanto maior for a distância temporal do observador. No caso de Portugal, trinta anos parece um prazo insuficiente para ultrapassar os traumas do passado colonial. No nível da investigação universitária, resulta chocante a escassez ou, por acaso, a dificuldade de acesso a estudos sobre a história sociolinguística do português em África e Ásia.
Isto resulta mais evidente considerando a ampla bibliografia existente nos casos do inglês (xix) e o francês (xx). No nível do estado, contra o que estabelece a Constituição portuguesa, a política oficial de passividade na defesa e promoção da língua apenas é quebrada pela teimosia dos novos países africanos ou Timor que, depois de muita insistência, recebe alguns professores de língua, contudo, insuficientes para atender a demanda.
Estudarmos a CPLP (mais projecto do que realidade) apenas como facto presente, sem acompanhá-la de uma explicação do passado, seria equivalente a apresentar esta entidade internacional como novidade histórica absoluta.Este discurso, carente de perspetiva, contém o mesmo intuito legitimador do modelo nacional de organização das sociedades europeias, iniciado com a revolução francesa.
A consolidação das línguas nacionais nos seus respectivos territórios veio acompanhada do progressivo abandono do ensino do latim, até à sua total supressão do bacharelato. Este facto, acompanhado pelo alargamento do sistema de ensino primário facilitou a alfabetização maciça da população.
Durante o século XX as histórias da língua ignoraram o facto de o português ter convivido, secularmente, com a língua comum europeia, numa distribuição de funções variável, mas permanente nos âmbitos universitário e institucional.
Afirmar que, por séculos, o português não foi em Portugal a única língua da cultura é uma forma de tornar relativa a sua importância, e talvez isto seja incómodo e irreverente para a história oficial, caracterizada pela pretensão de unanimidade, interpretando o passado em função do presente. Mas isto não é só característico de Portugal. No nosso continente, a importância do latim no passado continua a ser tratada como assunto anedótico, residual ou mesmo inexistente.
Na República Literária, observámos um exemplo histórico de um grupo de países relacionados, no plano académico e cultural, por uma língua comum. Pessoas de países e religiões diferentes mantiveram um diálogo permanente, criando uma rede de relações independente e duradoura.
A lição que podemos tirar para a lusofonia presente é que só convertendo a sociedade em protagonista principal lhe poderemos dar um conteúdo duradouro. Só levando a iniciativa dos governos para um segundo plano é que a lusofonia poderá ter um futuro claro.
Depois do período histórico do nacionalismo (1789-1989), universalmente difundido, em que cada nação pretendia representar o mundo em todos os sentidos, parece chegada a altura de abandonar o modelo de língua como propriedade nacional. Neste sentido, um recente artigo de Fernando Cristóvão incide na ideia da república do português, explicada pelo modelo dos círculos concêntricos.
Na sua comunicação ao encontro A Língua Portuguesa: presente e futuro, Solange Parvaux (xxi) realizava umas propostas para uma política da língua que me parecem da maior sensatez, e que assumo como próprias:
1.«A nível da CPLP, a medida prioritária é a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990». Acrescentamos que a Galiza participou na sua elaboração através da Comissão Galega do Acordo Ortográfico.
2.«O estabelecimento de acordos entre os países lusófonos nos exames para a certificação dos conhecimentos de português-língua estrangeira...»
3.«Definir regras, em comum, para a integração das palavras estrangeiras». É nas linguagens técnicas que precisamos de uma maior unidade de critério. A criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa deveria facilitar esta aproximação entre as variantes americana e europeia da nossa língua.
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Excertos de : "A República Literária e a Lusofonia - Semelhanças, diferenças e exemplos"
Autoria : Ângelo Cristóvão
Publicação : IV Colóquio Anual da Lusofonia (Bragança); 3-4 Outubro 2005
Artigo Completo em : Questione Della Lingua (v2)
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