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Incrementar o uso da Língua Portuguesa

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Localização: Carnaxide, Lisboa, Portugal

segunda-feira, outubro 10, 2005

As Criança

Quando se lê o título deste texto, afirmar-se-á, de imediato, que existe ali um erro; mais concretamente um erro de sintaxe, pela não concordância de número entre o artigo e o substantivo; para ficar gramaticalmente correcto, deveria escrever-se "as crianças", ou "a criança". Contudo, está presente quem me pediu, melhor dizendo, quem me obrigou a colocar assim o título (ele está sempre presente quando escrevo), e que me diz: "é dessa maneira que o quero escrito não faça qualquer tipo de alteração pois só assim eu consigo transmitir completamente as emoções que sinto e senti quando fui envolvido naquele acontecimento que transcende todo o tipo de racionalidade" E eu não altero... "a gramática é um espartilho que limita e distorce a realidade dos factos da história do tempo das contradições das angústias do choque das ligações entre o passado e o futuro a memória a imaginação a estabelecer uma ordem onde ela não existe no caos fervilhante das sinapses do pensamento emotivo" Espere, deixe-me colocar a pontuação... "ao diabo com a gramática escritor dum raio surdo e impertinente me ralam as pontuações que não sou reles escriba que se preocupa com caracteres gráficos com pontos e vírgulas com sintagmas rio choro tenho um coração uma alma alegrias tristezas angústias sentimentos em catadupa que se misturam se contradizem se negam" Eu remeto-me à minha modesta condição de relator, e continuo a transcrever... "vi a criança perdida no meio da linha do comboio só desamparada foi a criança outra que vi foi a criança neta que vi uma criança que era as duas uma outra ao mesmo tempo qual reverso das visões de um alcoolizado que vê em duplicado o objecto físico do seu campo de visão e peguei na criança ao colo e fugi com ela para a gare foi a criança neta que estreitei nos braços foi a criança outra que confortei a criança neta que salvei a criança outra a quem emprestei um avô momentâneo a criança neta a quem perguntei pela mãe" Eu só passo para o papel o que ouço, e nada mais... "a menina outra neta apontava para aqui para acolá para o sítio onde estaria a mãe que deveria estar ali com ela mas não estava com a menina neta outra ao colo de um avô que não era que o foi esperando a mãe que era sem ter sido homem neta criança avô envoltos num laço deslaço emocional de ligações perdidas achadas que faz parar o tempo e encurta o espaço" Eu não interrompo, continuo a relatar... "a mãe apareceu aflita chorosa o melhor do mundo são as crianças também choro por ti que as abandonas as maltratas as conspurcas homem com h pequeno pequeníssimo avo de ser racional em nome autoaplicado sem actos inconstante inconsciente por elas que te crêem te adoram te respeitam idolatram imitam na sua cândida ingenuidade simplicidade de rebento indefeso" Eu não concordo, nem discordo; como diria Pessoa : eu escrevo... "levei a criança outra a casa da criança neta em pensamento que me saltou para o pescoço e abracei e beijei a criança outra em pensamento na criança neta e a criança neta que não a outra em pensamento abrimos os presentes da criança neta que não a criança outra que também lá estava em pensamento e as criança brincou com os brinquedos de ambas em pensamento..." Não quero fazer futurologia, mas estou em crer que estas crianças , sem o saber, vão ficar ligadas para sempre, como siamesas espirituais, até ao fim da vida deste homem avô; se ele entretanto não vier a sofrer da Doença de Alzheimer...