Os Livros
Os livros comportam-se exactamente de maneira contrária aos pombos-correio: vende-se um pombo-correio de manhã, e à tarde ele volta (dá lucro...); compra-se um livro de manhã e à tarde já temos um "amigo" a pedir emprestado, que nunca mais o devolve (dá prejuizo...).
Refiro-me aqui ao lucro pessoal: financeiro (no primeiro caso) e financeiro e cultural (no segundo).
Existe prejuízo financeiro quando ficamos com menos valor do que tinhamos antes da operação (no caso em apreço, ficamos sem o valor que demos pelo livro, e sem o livro); existe ganho financeiro quando aumentamos (no caso em apreço, ficamos com o dinheiro da venda do pombo-correio, mais o pombo-correio; é como "roubar galinhas e vendê-las ao dono").
Existe prejuízo cultural quando ficamos privados da aculturação inerente à leitura de (quase) qualquer livro, a meio do processo de tomada de conhecimentos, livro esse que tivemos o interesse e o gosto de comprar, pelo simples facto de o emprestarmos apressadamente (embora com todo o gosto, não duvido...) a um "amigo" "interessado" no seu conteúdo; enquanto o livro não é devolvido (se o for...) ficamos a remoer na "metade" que já lemos, tirando (mesmo que inconscientemente) ilacções erradas ou erróneas, por não termos abarcado a obra no seu todo; quando o livro é devolvido, ficamos contentes e eufóricos (porque gostamos do assunto de que trata), e reactamos a leitura, quase de imediato, na tentativa de diminuir o hiato de tempo gasto, e encontrar novamente "o fio da meada"; se o interesse for muito forte, opressivo, apressamo-nos a dar uma saltada à livraria, comprando outro exemplar pois, para quem gosta de livros, é sempre muito mais fácil (psicológicamente falando...) gastar mais uns "cobres" do que privar o detentor do livro dessa aculturação que tanto prezamos.
Existe lucro cultural quando ficamos mais "ricos" em conhecimentos, em espírito crítico, em aprimoramento da fala e da escrita, em discernimento na leitura, em melhoria na análise do mundo que nos rodeia, em cultura; este valor, por meio dos livros, é sempre muito maior, e tem muito mais "peso", do que o valor monetário que demos pela compra do livro;
Eu não tenho nada contra emprestar ou dar livros, desde que esse empréstimo, ou essa dádiva, sirva para o aumento da "riqueza" cultural de quem os toma por emprestados, ou de quem os recebe como oferta.
No entanto, devemos ser pragmáticos; na maioria das vezes, o interesse do "interessado" no nosso livro vem simplesmente da assumpção de que o conteúdo talvez valha a pena uma leitura, porque nós o compràmos; ele não pergunta : " - onde compraste essa obra ? quero ir lá comprar um exemplar para mim !"; tomando o livro emprestado, a meio da leitura do proprietário, ele não diz " - acaba de ler primeiro, emprestas-mo quando tiveres acabado de ler..."; não, ele aceita !
Tive um colega de escritório que supesava os livros e conferia o número de páginas para julgar sobre o seu "valor", em face do preço do mesmo; para ele, um romance de "cowboys" com 500 páginas valeria muito mais que uma simples folha de papel, velha e suja; não importando que essa folha contivesse as fórmulas da Teoria Da Relatividade de Einstein...
Além disso, há bastantes livros nos escaparates cujo conteúdo é autêntico "lixo", sendo a sua compra um "luxo", qualquer que seja o valor que gastemos; lendo esses livros ficamos embrutecidos, confundidos, enganados; ficamos culturalmente mais pobres.
No jornal "24 horas" (edição de hoje, ou de ontem) vem, na primeira página, uma notícia sobre a escritora Margarida Rebelo Pinto; a notícia diz, em resumo, que uma professora universitária garante que os livros da M.R.P. têm muitos erros e são auto-reciclados; quer dizer, ela copia temas e partes de romances anteriormente escritos por ela, baralha e torna a dar... um romance "novo"; não sei se a análise é correcta ou não, porque não os leio, mas acredito que a falta de assunto, a "facilidade" da escrita e as pressões das editoras venham a dar nisto.
O que escrevi acima acerca do lucro ou prejuízo de emprestar ou dar livros, só se refere a livros ainda em processo de leitura e cimentação dos textos, e não dos livros já lidos, estudados e assimilados, que vão para a prateleira da estante fazer companhia aos outros que lá estão; velhos, tristes, quedos, moribundos, esperando ansiosamente um mero olhar que se fixa, uma mão que se aproxima, uns dedos que folheiam; nessa altura eles rejuvenescem e brilham, qual fénix renascida; nessa altura, a sua alegria é tanta que chega, muitas vezes, a transbordar para o leitor putativo; os livros são "cidadãos do mundo", gostam de viajar, de conhecer novas gentes, novas culturas, novos pensamentos, novas idéias.
Mas os livros precisam ter muito cuidado com as mãos que os agarram; é por isso que eles não chamam todas as pessoas que lhes passam em frente; esperam ansiosa e pacientemente pelo seu eleito; aquele que lhes vai dar um novo ânimo, tratando-os com o respeito que merecem, e tirando o devido proveito da sua verve; às vezes enganam-se (até os livros se enganam...) e acabam servindo de apoio na mudança de uma lâmpada, ou virados e revirados numa qualquer fotocopiadora de província ou, pior ainda, despedaçados e atirados para a fogueira, por via de um qualquer index fundamentalista; para isso, mais valia que os deixassem na sua dormência e quietude até ao final dos tempos...
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