A Cultura Nacional
Um tipo nasce em Portugal. Aparentemente é uma sorte. Portugal não é a Somália, a Serra Leõa ou a Guiné. Não é um desses países onde a maioria da população é paupérrima. Portugal não é, tão-pouco, um país da América Latina. Pertence à Europa e tem o acerto de convir à União Europeia. O clima é bom. As pessoas simpáticas. Come-se bem. As praias são fantásticas. O mar é belíssimo. A paisagem suficientemente variada. Enfim, um tipo tem as condições naturais propícias para dar e fazer o seu melhor por aqui.
Em contraponto a toda esta sorte, o português recebe uma carga social embaraçosa. É o desenrasca em detrimento do planeamento. O individualismo em detrimento da produção em grupo. A esperteza saloia em vez do trabalho sério. O fado e a saudade pueris em vez do sentimento gerido e amadurecido. Ou seja, a cultura nacional, como fenómeno colectivo, é uma cultura cuja programação devia ter sido, de há muito, alterada. Formada. Educada. Voltada para os desafios do futuro.
A cultura depende da envolvente social que circunda os indivíduos e não dos genes de cada um. A natureza humana, essa sim, é herdada e universal. A personalidade já é específica ao indivíduo, muito embora possa ser herdada e, concomitantemente, apreendida / desenvolvida. Mas a cultura não, a cultura só se aprende. E o português vai aprendendo mal, geração após geração.
Uma má cultura traduz-se por maus símbolos, heróis, rituais e valores, muitos deles absolutamente distorcidos.
O símbolo do Zé Povinho, por exemplo, desordeiro, rosado e embrutecido, devia ter sido eliminado há muito tempo. É um símbolo tosco, rasca, sem sentido. Deviamos ter vergonha dele e não pendurá-lo por aí, qual ícone nacional. Isto para não falar das cores da bandeira nacional, a fazer lembrar um país africano ou da América Latina, que de facto não somos. O orgulho de nós próprios não implica sujeitarmo-nos, outro exemplo, a uma bandeira de indiscutível mau gosto!
Os heróis dos portugueses estão, também, errados. Os miúdos começam logo por ter como heróis os colegas subversivos e mal comportados. Os que estudam e têm boas notas são, desde logo, escarnecidos e afastados dos vários grupos "tribais", como se não fossem esses os modelos melhorzitos que Portugal tem. A polícia é considerada a bófia... E depois há todos os outros "heróis", verdadeiros patifes, a começar pelos usuais dos clubes de futebol e a acabar em políticos repugnantes e corruptíveis.
Os rituais continuam, também, demasiado grotescos. Se passarmos pelo interior de Portugal, mas não só, veremos os jogos populares e as festas a incorporarem rituais patéticos e muitas vezes civilizacionalmente retrógrados. Por um lado são aspectos idiossincráticos que marcam quem somos mas, por outro, o relembrar sistemático e aprofundado da história deixa-nos demasiado presos ao passado e a práticas pouco condizentes com a construção do futuro.
Os valores, finalmente, também não andam bem. Muito devido ao oportunismo e ao chico-espertismo do povo, leva-se a endeusar, de forma irreflectida, o enriquecimento rápido e fácil, a corrupçãozinha e o logro, a trapaça em cada esquina. Desde o engano propositado ao fazer um troco, ao absentismo por uma putativa doença, vale tudo.
E por tudo isto Portugal não pode avançar. A crise hoje não é económica. A crise é absolutamente cultural.
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Por : José Crespo de Carvalho - Professor Catedrático / ISCTE
In : Coluna De Trajano - Semanário Económico (30-09-2005)
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