A Língua Portuguesa - por Moacyr Scliar
"Última flor do Lácio, inculta e bela / és a um tempo esplendor e sepultura": nos versos de Olavo Bilac está resumido o dialético destino da língua portuguesa. É uma síntese excessivamente pessimista, esta; o português pode ser qualquer coisa, menos uma sepultura lingüística (talvez por isto Bilac neutralizou antecipadamente o sombrio termo com aquele ufanista "esplendor"). De qualquer forma, reflete uma sensação comum a todos que em português escrevem, a sensação de que estamos numa espécie de cul-de-sac idiomático e o fato de que eu tenha recorrido a um galicismo é, de alguma forma, prova disto: parecemos mais sérios quando falamos em francês, ou em inglês ou em alemão, que, em termos de hegemonia, substituíram o imperial latim, o mesmo latim do qual o português é, ainda segundo Bilac, a última floração.
O português não é uma língua franca, náo é um idioma com o qual possamos nos comunicar com facilidade em qualquer parte do mundo. E a pergunta que imediatamente emerge é: por que não? Ou, formulado de outra maneira, o que torna uma língua universal? Trata-se de uma questão que inquieta a humanidade pelo menos desde o episódio bíblico da torre de Babel. Numerosas foram as soluções propostas para superar a diversidade idiomática, para adotar uma língua na qual todos se pudessem entender.
O volapük, criado por Johann Martin Schleyer em 1879, e o esperanto, lançado por Lejzer L Zamenhof em 1887, prerendiam dar uma resposta a este desafio mediante a compatibilização de elementos provenientes de várias linguas e a simplificação das regras lingüísticas. Mas não é este tipo de racionalidade que preside às relações entre povos e pessoas em nosso tempo. A penetração de um idioma não depende de sua simplicidade ou de sua lógica interna; depende do país ou dos países, que estão por trás desse idioma. É, enfim, uma questão de poder, como Lewis Carroll sintetizou no famoso diálogo entre Alice e Humpty-Dumpty:
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In Ministério Da Cultura - Brasil
"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty-Dumpty num tom meio debochado, "ela significa aquilo que eu quero que signifique - não mais, nem menos."
"A questão é", disse Alice, "se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes."
"A questão é', disse Humpty-Dumpty, "quem manda - isto é tudo."
Neste século o idioma hegemônico tem sido o inglês - falado nos Estados Unidos, o país mais rico e poderoso do mundo. 0 inglês acabou assumindo o papel que Zamenhof pretendia para o esperanto. É, em alguns aspectos, um idioma mais racional - dispensa sinais gráficos, por exemplo -mas não é esta racionalidade que o impõe ao mundo, e sim o poder, poder político, econômico, cultural, norte-americano.Hegemonia, porém, não é destino. 0 idioma representa mais do que uma forma de comunicação extrafronteiras; contém uma carga afetiva que não pode ser avaliada pelo grau de aceitação internacional. Esta é a razão, aliás, pela qual o nosso mundo é cada vez mais multilingüistico; falar vários idiomas já não é motivo de espanto, faz parte do cotidiano de muitas pessoas. Não é outra, aliás, a experiência que têm os filhos de emigrantes - e a emigração é um fenômeno característico de nossos tempos.
Que o idioma nacional tem força prova-o à saciedade o caso brasileiro. Cento e sessenta milhões de pessoas, dispersas por um vasto território, entendem-se perfeitamente, o que não acontece em outros países: na China, os dialetos regionais são extremamente diferentes uns dos outros, e o mesmo acontece na índia. É importante assinalar que, no Brasil, ao idioma dos colonizadores europeus foram se agregando elementos de outras etnias, índios, negros, emigrantes. 0 número de denominações geográficas de origem indígena é muito grande. É uma fraca compensação ao alto preço que os povos indígenas pagaram à colonização, e até envolve algum sentimento de culpa; mas, de qualquer forma, é uma presença - lingüística e também cultural.
A miscigenação idiomática não se traduz apenas no acréscimo de novos termos, mas também em novas inflexões; o português falado no Brasil tem um ritmo, uma sonoridade que o tornam diferente do português falado em Portugal. É claro que existem diferenças regionais: sotaque próprio, expressões características. 0 que aparece no trabalho dos escritores: o texto de um escritor gaúcho como Simões Lopes Neto é bem diferente do texto de um Graciliano Ramos, e um livro do primeiro autor, recentemente publicado, teve de vir acompanhado de um glossário explicativo. Mas as peculiaridades regionais não impedem a comunicação; várias delas foram incorporadas ao acervo cultural do país, graças, em grande parte, à música, à televisão e, claro, à literatura: um idioma é basicamente o produto das pessoas que o falam, ao longo de muitas gerações, mas é também o resultado de uma fixação que se faz em grande medida através do texto escrito.
0 linguajar das pessoas condiciona de alguma forma o texto do escritor mas é também por este condicionada. Conclui-se daí que o destino de uma língua não depende do acaso. Se há idiomas que desapareceram, outros, pelo contrário, têm sido preservados e disseminados mediante uma ativa política cultural que privilegie o texto escrito - como é o caso do catalão.A pergunta que se impõe, portanto, é: num mundo cada vez mais globalizado, como preservar, e expandir, os idiomas nacionais em geral e o português em particular?
1) 0 ponto fulcral de ação é a região onde o idioma é falado. 0 objetivo aí é proporcionar às pessoas o domínio da língua que lhes permita não apenas usar esta mesma língua na comunicação, como ainda transformá-la num instrumento de auto-aperfeiçoamento e fonte de prazer estético. Trata-se de um processo educativo, desenvolvido basicamente, mas não exclusivamente, em todos os níveis da rede de ensino. No caso do Brasil, é de destacar o papel fundamental desempenhado pelos professores na introdução dos alunos à literatura de língua portuguesa. Verificou-se, nos últimos anos, uma revolucionária mudança de enfoque, na medida em que trabalhos de autores contemporâneos passaram a integrar o currículo escolar. Do ponto de vista do aprendizado esta nova situação apresenta benefícios evidentes. Em primeiro lugar, os alunos estudam uma literatura que diz respeito mais diretamente à própria realidade em que vivem. Em segundo lugar, descobrem no texto as modificações de linguagem que o tempo foi incorporando ao acervo do idioma. Em terceiro lugar, sentem-se motivados para ir mais adiante e descobrir também os grandes escritores do passado. Finalmente, podem, muitas vezes, discutir com os próprios autores a relação destes com o idioma - uma relação sempre viva e, sobretudo, plena de emoções.
2) Atividade paralela a esta, e igualmente transcendente, é a de normatização e fixação do idioma no país. Numerosas reformas ortográficas foram realizadas no Brasil, nem sempre com resultados positivos. Diz-se que a crase não foi feita para humilhar ninguém, mas isto só em parte é verdade. Os problemas criados por este sinal gráfico ilustram bem as dificuldades encontradas pelo comum das pessoas na incorporação de uma norma culta: as confusões se sucedem e a humilhação resultante colabora para afastar a população do idioma escrito. Quando a foto de uma tabuleta mal redigida é mostrada na mídia o efeito pode ser de esclarecimento, mas pode também ser de intimidação. 0 princípio básico de qualquer reforma ortográfica deveria ser, portanto, o da simplificação e o da democratização: simplificar para que o maior numero possível de cidadãos possa ler e escrever sem problemas ou traumas. A linguagem falada deve comandar o processo, como dizia Saunt-Beuve: "É preciso, dentro do possível, escrever como se fala e não falar como se escreve".A fixação do idioma seria impossível sem o apoio dos dicionaristas. Trata-se, como diz Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, autor do nosso famoso "Aureilão", de um "super-humano esforço". Para ilustrar o seu ponto, ele narra, no prefácio de sua obra, as desventuras pelas quais passaram os três organizadores do Dicionário da Lingua Portuguesa (1793) da Academia de Ciência de Lisboa, "... o qual, sabe-se, parou na letra A, em azurrar, fato glosado pelo sarcasmo de Herculano em uma de suas 'Lendas e Narrativas'. Desses acadêmicos, um, José da Fonseca, morreu, segundo Ramalho Ortigão, 'de lentas e dolorosas enfermidades contraídas nas vigílias da mais opressiva tarefa' e Bartolomeu Inácio Jorge e Agostinho José da Costa Macedo os outros dois ficaram cegos. 0 público, esse lhes deu 'o mais ingrato esquecimento'; e a Academia ofereceu a cada um dos três mártires da lexicografia, - 'como suprema e única remuneração de sua inglória fadiga' - um exemplar do Dicionário." Estas dificuldades não se limitaram a Portugal; a Academia Francesa levou sessenta anos para elaborar o seu dicionário.No Brasil a idéia é mais do que secular. No regimento da Academia Brasileira de Letras, elaborado por Machado de Assis em 1897, estava expresso o propósito de organizar "um vocabulário crítico de brasileirismos introduzidos na lingua portuguesa". Foi então editado um Dicionário de Brasileirismos, com base em levantamento feito por João Ribeiro, Em 1910, sob a presidência de Rui Barbosa, a Academia formulou um objetivo mais ambicioso: tratava-se de elaborar um verdadeiro dicionário brasileiro da lingua portuguesa. Dez anos se passaram e o dicionário não apareceu. A idéia foi retomada em três novos projetos, um de Mário de Alencer, outro de Laudelino Freire o um terceiro de Graça Aranha - este, inspirado pelo movimento modernista, propunha dar ênfase aos "chamados brasileirismos", e, ao contrário, eliminar os "portuguesismos". A proposta gerou polêmica; a Academia nomeou uma comissão para elaborar o dicionário - comissão esta desfeita em 1934, sem concluir o trabalho. Em 1940, Afrânio Peixoto, cansado do que ele chamava "obra de Penélope" (a mulher de Ulisses, que, esperando o aventureiro marido, tecia de dia e desfazia o trabalho à noite), assume a responsabilidade da tarefa, confiando-a a Antenor Nascentes, catedrático do Colégio Pedro II, que, em 1943, entrega à Academia um dicionário com 100 mil verbetes. Além deste dicionário, e do dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, já citado, o Brasil conta com o dicionário Michaelis, o dicionário Koogan-Houaiss (enciclopédico; Antônio Houaiss trabalha em um outro dicionário, muito mais amplo) e outros.
3) Como compatibilizar a grafia do português no mundo lusófono? Esta é outra questão difícil. 0 idioma português, falado por cerca de 219 milhões de pessoas, está difundido por cinco continentes: Europa (Portugal, Açores, Madeira), África (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Zanzibar), Ásia (Macau, Goa, Damão, Malaca), Oceania (Timor) e América (Brasil), isto sem falar nas'diásporas' que mantém o idioma - nos Estados Unidos, na França, na Alemanha e em outros países. É dos idiomas mais falados, sendo superado somente pelo chinês e seus dialetos, pelo inglês, pelo russo, pelo árabe, pelo hindi e pelo espanhol. Mesmo idiomas de grande penetração, como o francês e o italiano, são falados por menor número de pessoas.Mas há um problema com a grafia do português. Diferente do inglês que é grafacio praticamente da mesma maneira na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, do espanhol, uniformizado nos países hispânicos graças ao trabalho da Academia de Ia Lengua e ao francês, que é o mesmo nos países francófonos, não há homogeneidade entre o português escrito em Portugal, no Brasil, ou nos países africanos lusófonos - tanto isto é verdade que a Organização das Nações Unidas - ONU, prepara documentos com duas grafias, a do português de Portugal e a do português do Brasil; e que, em traduções feitas na França, por exemplo, encontraremos: "Tracluit du Portugais" ou "Traduit du Brésilien".A existência oficial de duas ortografias remonta a 1911. Naquele ano foi feita em Portugal uma grande reforma ortográfica - não adotada no Brasil. Um acordo celebrado em 1931 entre os dois países não foi implementado; o mesmo aconteceu com a chamada Convenção Ortográfica Luso-Brasileira, de 1945, materializada em Portugal mas não no Brasil. Leis ortográficas de 1971 (Brasil) e 1973 (Portugal) reduziram as diferenças, sem, no entanto, eliminá-las. 0 Acordo Ortográfico do Rio de Janeiro (1986) encontrou reação em Portugal e ficou inviabilizado. O Acordo de 1990 teve sua trajetória facilitada pela criação da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Portugal, Brasil, Angola, Guiné-Bissau,Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique). Durante oito anos o tema foi discutido. Em julho deste ano de 1998 o único país que ainda não havia aderido ao Acordo, Cabo Verde, acabou por fazê-lo.As modificações dizem respeito sobretudo ao uso de consoantes mudas ou não articuladas (muito comuns em Portugal: acção, afectivo, direcção, exacto, óptimo), o sistema de acentuação gráfica (o trema desaparece, certos ditongos - como "eia" e de "idéia" - não são mais acentuados) e a hifenação. Os alfabetos dos sete países incorporarão as letras k, y, z, deixando de considerar estrangeirismos as palavras com elas grafadas. Pelo que se depreende, o objetivo geral foi simplificar a grafia. O que é mais do que desejável: complicações na grafia já as temos em demasia.Em termos de grafia há ainda um outro problema: as palavras de origem estrangeira, sobretudo o inglês. Em nosso tempo, este é o idioma da ciência e da tecnologia, como foi o grego em outra época. Com a globalização é inevitável a incorporação de palavras e expressões em inglês, ou em outras línguas. E também é inevitável o aportuguesamento, como aconteceu coma palavra 'futebol', do inglês football. Alguns puristas propuseram o estranho 'ludopédio', baseado em duas palavras latinas que significam 'jogo'e 'pé'. Mas a codificação destes termos ainda está por ser conseguida.Enfim: o acordo ortográfico é um tema não isento de controvérsias até pelo aspecto prático: será preciso reeditar um grande número de obras. Mas não há dúvida de que é preciso continuar pelo caminho da simplificação, da racionalização. O que é uma exigência dos novos tempos.
4) Como disseminar o português em países que não falam o idioma? Esta também é uma questão de difícil resposta - e de interesse imediato, nestes tempos de globalização. Ainda que o português não seja um idioma hegemônico, pelas razões acima citadas, cada vez mais pessoas desejam aprendê-lo. É o caso dos países do Mercosul, cujo intercâmbio comercial com o Brasil é cada vez mais intenso. Por enquanto a necessidade de comunicação tem sido precariamente solucionada pelo 'portunhol', esta curiosa síntese de português e espanhol, muito comum entre os turistas e nas regiões fronteiriças. Mas o 'portunhol' serve mais como uma introdução ao português. O estímulo ao ensino de português em escolas e em universidades é um objetivo a ser perseguido. Nos Estados Unidos, por exemplo, há numerosos departamentos que trabalham com a língua portuguesa e com a cultura e literatura brasileiras. Importante é também mencionar o programa de estimulo às traduções da Biblioteca Nacional, que realiza periodicamente encontros de tradutores.
5) Este último ponto remete a uma outra questão: é a difusão da literatura brasileira em outros países de língua portuguesa, como parte do processo de integração cultural. Nos últimos anos várias foram as reuniões de escritores poetas, críticos e professores de literatura dos países da CPLP. Exemplo recente é o encontro Pontes Lusófonas, reaiizado em Lisboa em julho de 1998 por ocasião da Expo 98, a grande exposição realizada na capital portuguesa, o encontro mostrou, uma vez mais, que os intelectuais dos países da CPLP conhecemse pouco entre si. "Em português nos desconhecemos todos", foi a significativa manchete do jornal lisboeta 0 Público. Em contrapartida, estes países conhecem bem as telenovelas brasileiras, que aliás gozam de grande prestígio e ajudam a difundir expressões brasileiras.
É preciso, portanto, que a indústria editorial siga o exemplo das redes de televisão, incrementando o intercâmbio.Outra iniciativa no sentido deste mesmo intercâmbio é o prestigioso Prêmio Camões. Atribuído anualmente por um júri formado de portugueses e brasileiros, a premiação vem distinguindo, desde 1989, ilustres escritores, poetas, ensaístas: Miguel Torga (Portugal), João Cabral de Melo Neto (Brasil), José Craveirinha (Moçambique), Vergílio Ferreira (Portugal), Rachel de Queiróz (Brasil), Jorge Amado (Brasil), José Saramago (Portugal), Eduardo Lourenço (Portugal), Artur Carlos M. Pestana dos Santos, Pepetela (Angola), Antônio Cândido (Brasil). A divulgação do resultado, sempre com grande cobertura de imprensa, ajuda enormemente a difundir escritores nos vários países.
Para terminar: ainda estamos em busca de nosso idioma, ainda estamos tentando descobrir como disseminá-lo na população e no exterior. Neste final de milênio, esta é uma busca urgente. Porque quando falamos em idioma, estamos falando em populações, estamos falando em identidades, estamos falando em auto-afirmação. E isto não pode ser adiado.
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