A falar (Português) é que a gente se entende...

Incrementar o uso da Língua Portuguesa

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Localização: Carnaxide, Lisboa, Portugal

sábado, agosto 13, 2005

E Se Os Brasileiros Descobrem Que Os Portugueses Acham Que Eles Falam Brasileiro ?

Parte I No rescaldo da visita do Presidente Lula da Silva, decerto um dos poucos chefes de estado, do presente e do passado, que só fala Português, e também porque o verão convida a viajar, não resisto a incitar os leitores a dirigir o seu olhar para um dos países que mais está na moda: o Brasil. Poderia ciceroneá-los pelos encantos do Leblon carioca, pelas jóias do urbanismo colonial de Paraty ou Tiradentes, ou pelos recantos das praias de Búzios. Poderíamos até falar da arquitectura, das artes plásticas, da dramaturgia, do cinema ou da música brasileira, que não são temas desinteressantes, mas não – esta viagem será mesmo e só linguística. 1. As línguas indígenas Antes de 1500, o território agora chamado Brasil não estava desabitado. Sabe-se que os portugueses lá encontraram núcleos populacionais pacíficos e afáveis, aos quais deram o nome de tribos índias, na senda do erro histórico de Colombo. Apesar de se tratar de populações ágrafas, ou seja, sem conhecimento de um registo linguístico escrito, os índios do Brasil, pertencentes maioritariamente às famílias tupi e guarani, não eram desprovidos de fala. O enquadramento político e cultural que enformou os processos de colonização do continente americano pelas diversas nações europeias não era, porém, propício ao reconhecimento e à preservação dessas línguas, como não favorecia as populações indígenas, nem quase reconhecia o seu direito à existência, menos ainda à autodeterminação e à posse da terra. 2. A prevalência do Português Naquele novo mundo era, então, para se falar a língua europeia dos seus ‘descobridores’. Mas no Brasil a questão não ficou logo resolvida, porque a posse da terra foi sistematicamente disputada por diferentes países europeus e as colónias aí instaladas deixaram marcas linguísticas que, em alguns casos, ainda hoje perduram. Não esquecendo que os escravos vindos de África, em número não despiciendo e que consigo trouxeram conhecimentos linguísticos de diversas proveniências, não terão deixado de influir na realidade linguística brasileira. Se o Português prevaleceu, foi talvez porque as capitais políticas (primeiro Salvador, depois Ouro Preto, Rio de Janeiro e mais tarde Brasília) nunca deixaram de falar Português e também porque foi pela voz de um herdeiro ao trono de Portugal que a independência do Brasil se fez ouvir. Deve, no entanto, deixar-se bem claro que, apesar do Português ser a língua oficial do Brasil e ser a língua mais falada neste país, a sua realidade linguística é bem complexa e diversa, e que, apesar de muito estudada, é ainda muito desconhecida. 500 anos de história documentada e 181 anos de independência política fazem do Brasil um país ainda em busca da sua identidade nacional, logo também disposto a questionar a sua identidade linguística. Qual é então o estado do Português no Brasil? 3. O estado do Português no Brasil Na generalidade, os brasileiros consideram que falam Português e só reflectem sobre o Português que falam quando deparam com falantes do Português Europeu. Dado que os portugueses mais frequentemente acessíveis são os donos de padarias e outros pequenos comerciantes, geralmente provenientes do norte de Portugal, que por todas as razões, e embora muitas vezes sejam acarinhados, constituem o objecto típico da piada de botequim, o Português destes portugueses torna-se tão risível quanto eles próprios e a sua saudosa ‘terrinha’. O mesmo, ou quase, se passa com os brasileiros que emigram para Portugal. Ao seu bom humor não escapa a graça de ‘deitar o leite fora’ (no Brasil ‘jogar o leite fora’) ou ‘carregar no botão’ (no Brasil, ‘apertar o botão’), imaginando como conseguir ‘botar o leite deitadinho’ ou como ‘arrancar e levar consigo o botão’. Para seu grande espanto, aqui descobrem que a língua que falam, na opinião dos seus ‘irmãos portugueses’, não é Português – é Brasileiro. Para os filólogos e linguistas brasileiros a questão é outra. Ultrapassada a fase em que se pretendia dotar a independência do Brasil de uma língua própria, o que dificilmente se alcança por voluntarismo, chegou-se agora a um ponto em que a consciência das diferenças começa a tomar corpo como identidade linguística e a designação de Português Brasileiro, que progressivamente tem vindo a substituir a anterior de Português do Brasil, é um claro sintoma. Ora, as diferenças linguísticas entre o Português Europeu e o Português Brasileiro distribuem-se por diferentes domínios, mas não são, globalmente consideradas, tão radicais quanto o que alguns, quer brasileiros, quer portugueses, gostariam de fazer crer. 4. Ai se os brasileiros descobrem ... Chamar Brasileiro ao Português falado no Brasil, querer catapultar as duas variedades do Português a duas línguas diferentes, dar mais peso às diferenças do que às semelhanças é fazer o contrário do que convém a Portugal, aos portugueses e ao Português. É falta de vista e é mesmo um erro histórico que poderá a prazo condenar o Português Europeu à extinção. Pode ser que o Brasil decida tomar esse rumo, embora não haja ainda razões para o suspeitar, mas nós não temos de ‘ajudar à festa’. Não esqueçamos que o Brasil tem uma área de cerca de 8 milhões e 500 mil km2, ou seja, quase 100 vezes o tamanho de Portugal, e que tem uma população estimada em 170 milhões de habitantes, ou seja, 17 vezes o número de residentes em Portugal. Não esqueçamos que esta força bruta não serve apenas para as estatísticas, serve, acima de tudo, para assegurar um índice de diversidade suficiente para a preservação das espécies, e serve para a formação de uma massa crítica que permita a produção de conhecimento e a sua expressão em Português. Será que os nossos interesses são outros? A política linguística do Português não deve, pois, e assim concluo, deixar de ser pensada conjuntamente por Portugal e pelo Brasil. Sem retórica e sem subordinação às circunstâncias de celebração desta ou daquela data festiva. Com rigor.
----------------------- Por : Alina Villalva - Professora de Linguística da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa - In Notícias Da Amadora