A falar (Português) é que a gente se entende...

Incrementar o uso da Língua Portuguesa

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Localização: Carnaxide, Lisboa, Portugal

sábado, agosto 13, 2005

Divagações De Um Marujo

Falar Português Diz-se que um homem (ou mulher, uma vez que o conceito do politicamente correcto é avesso a estas generalizações de tendências machistas), para fazer valer a sua existência deve, durante a sua curta passagem pela Terra, “plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”. A ideia parece-me nobre na sua essência, contudo, algumas particularidades exigem que nos debrucemos mais atentamente sobre o assunto: Quanto ao acto de plantar uma árvore, nada a opôr, antes pelo contrário, e eu próprio já o fiz, pelo menos, um par de vezes. Se, porém, descontarmos o acto criminoso, cometido anualmente, de cortar um pinheirinho recém-criado para compor a decoração natalícia da nossa casa, devo dizer que tenho na consciência, como autor material ou apenas moral, o abate de, pelo menos, vinte e uma indefesas arvorezinhas (converti-me, entretanto, às facilidades do pinheiro artificial). Assim sendo, para poder apresentar um saldo positivo, tenho, ainda, umas vinte árvores para plantar, o que não será tarefa fácil, uma vez que, para a coisa ser bem feita, há não só que plantá-las mas também garantir a sua subsistência até terem a robustez suficiente para vingarem por si próprias. Ter um filho parece, à primeira vista, uma tarefa simples, dependendo apenas da fertilidade das pessoas envolvidas. O que não se pode esquecer é que, tal como uma árvore, uma criança (mesmo depois de oficialmente perdido esse estatuto, pelo que a designação deve aqui ser entendida no seu sentido lato) exige grandes cuidados e atenções que, hoje em dia, se podem prolongar durante perto de um quarto de século (e com tendência para aumentar!). Além disso, sendo a tarefa normalmente repartida por duas pessoas, calha a cada casal o dever de lançar, pelo menos, duas crianças ao Mundo, isto se cada um quiser ter o seu quinhão de realização pessoal, e fiquemos por aqui, para não embarcar em considerações de carácter demográfico que nada adiantariam à nossa conversa. E, já agora, será legítimo considerarmos os casos de adopção? Não terão os casais inférteis, na sua desvantagem natural, o direito de se realizarem neste campo? Não será igualmente trabalhoso pegar numa criança desamparada, vesti-la, calçá-la, alimentá-la e educá-la devidamente? O raciocínio complica-se e promete não ficar por aqui… Resta-nos, por fim, abordar o tema da escrita de um livro: será suficiente escrevê-lo ou haverá, ainda, que publicá-lo? Se for este último caso, facilmente chegaremos à conclusão de que cerca de noventa e nove por cento da Humanidade não conseguiu atingir este grande objectivo da sua existência. O ideal seria ter posses suficientes para uma edição de autor ou recorrer a um editor conhecido, mesmo que os nossos méritos literários não estejam devidamente comprovados (e hoje em dia assistimos a muitos desses casos, entre os quais se contam os de alguns supostos “meninos-prodígio” que foram devidamente “empurrados”). E se falarmos de obras publicadas qual será a mínima tiragem para serem consideradas? É que se bastar um exemplar, em qualquer tipografia se conseguirá uma impressão por um preço módico. E, já agora, qual o número mínimo de páginas ou, para sermos rigorosos, o número mínimo de caracteres? E poderemos contar os espaços e a pontuação? Eis, pois, as dúvidas que se colocam a qualquer potencial escritor. E, depois, há a questão da fama: há os que escrevem para a ganhar e há os que a têm e utilizam para publicar o que escrevem. Numa sociedade em que o lucro é o principal objectivo é fácil enveredar pelo segundo caminho, pois é mais provável os editores apostarem em quem lhes dará garantias de venda, independentemente da qualidade da sua escrita. O importante é saber que as massas se sentem mais estimuladas a procurar um autor que já conheçam por outros predicados, o que lhes aguça a curiosidade. É por isso que, cada vez mais, assistimos ao despontar de escritores-actores, escritores-jornalistas, escritores-desportistas e, principalmente, escritores-vedetas-de-reality-shows (perdoem-me o estrangeirismo), sem que o seu talento seja devidamente avaliado e deixando de fora inúmeros candidatos com grande potencial. Este, sim, é o triunfo da chamada “escrita light” (Ops! Lá saiu mais um). Mas o que será, então, necessário para que um texto seja considerado de qualidade e para que um escritor seja considerado um bom escritor? Ao utilizar a expressão “seja considerado”, parto já do princípio de que não há critérios de julgamento absolutos nem avaliações totalmente imparciais. Creio ser da opinião geral que um escritor deve saber exprimir-se correctamente na língua em que escreve. Este conceito de correcção é, porém, mais polémico do que à partida possa parecer. Se, em tempos, as regras de gramática e de ortografia eram extremamente rígidas, com o objectivo de preservar a língua em toda a sua pureza, hoje em dia já se tem um conceito mais dinâmico e liberal em relação à expressão linguística. E a verdade é que uma língua não é uma realidade estática, pelo contrário, está em permanente evolução, recebendo (e dando) as mais variadas influências, o que contribui decisivamente para a sua riqueza. Que seria, aliás, do Português se a rigidez original do Latim não fosse deturpada pelo uso popular e enriquecida pelo valioso intercâmbio com outras culturas? E no que toca a incorrecções, temos, hoje, exemplos de verdadeiros “pontapés na Gramática” que já foram institucionalizados, como a expressão “o comum dos mortais”, largamente utilizada em vez de “o mais comum dos mortais”, ou do celebérrimo “penso [eu] de que…”. Já nem falo daqueles treinadores de futebol que dizem que “a moral da equipa está em baixo”, sem saber que com tal expressão estão a afirmar que os seus jogadores se entregam a actividades licenciosas ou, no mínimo, pouco recomendáveis. E que dizer das palavras re-derivadas que todos os dias surgem na Comunicação Social, tais como “fusionar” em vez de “fundir”, “referenciar” em vez de “referir” ou “sugestionar” em vez de “sugerir”? Já na nossa Marinha (muito à semelhança do que se passa no mundo empresarial) tornou-se extremamente popular o aportuguesamento de palavras e expressões anglo-saxónicas, mesmo que na nossa língua existam as suas equivalentes, pois dá um ar entendido e muito profissional. Surgem, assim, preciosidades como “mandatório”, “briefar”, “colapsar”, “lockar”, “reportar” (com o sentido de “relatar”), “checar” ou “sanitar” (pormenores deste tipo fazem com que na mensagística naval se produzam verdadeiras pérolas literárias, dignas de compilação!). Mas que autoridade tenho eu para falar quando os nossos doutos linguistas já estão a incluí-las nos dicionários, juntamente com “clicar”, “scanizar” e outras que tais?! Já não deve, aliás, faltar muito para que na nossa grafia oficial o “K” substitua o “C” e o grupo “Qu”, tal como se faz nas mensagens de telemóvel ou nos grafitos – perdão, grafitti – que um pouco por toda a parte embelezam as paredes dos nossos prédios. E, de resto, eu próprio devo confessar aos meus pacientes leitores que não tenho, ainda, um completo domínio do uso da língua portuguesa, sendo, volta e meia, confrontado com algumas incorrecções da minha própria expressão. Felizmente, nessas alturas, costumo ter a felicidade de encontrar algum camarada mais entendido que tem a amabilidade de me corrigir. Sucedeu-me assim, certa vez, ao redigir uma proposta de louvor para um dos meus subordinados, utilizar o termo “voluntarioso” para designar um dos seus predicados. Antes da proposta chegar ao Comandante da unidade tinha, forçosamente, de passar pelo Imediato. Este, após uma leitura atenta, mandou-me chamar e alertou-me para aquele pormenor: - O que queres dizer com a palavra “voluntarioso”? - Essa agora!? - Respondi. - Como a palavra sugere, pretendo dizer que o homem é muito determinado e que tem uma vontade de ferro! Aí o Imediato sorriu e mostrou-me num dicionário o verdadeiro significado do termo. Transcrevo: “voluntarioso, adj., que procede apenas segundo o impulso da sua vontade; amigo de fazer a sua vontade; que gosta que todos lhe façam a vontade; caprichoso; teimoso…”. Naturalmente, não era nada do que eu pretendera transmitir. - Está bem, está bem! - Admiti. - Enganei-me. Vou corrigir a proposta e utilizar uma expressão mais correcta. Dali a pouco, estando esse meu subordinado de partida para a nova unidade, foi por mim conduzido ao Imediato para as despedidas formais. Como a solenidade do momento impunha, este teceu um rasgadíssimo elogio ao trabalho por ele realizado durante a sua comissão de serviço, concluindo com as seguintes palavras: - E por fim, Sr. E., gostaria de lhe agradecer a sua permanente disponibilidade e o facto de ter sido sempre um indivíduo altamente prestável e voluntarioso. Fiz um grande esforço para conter o riso, enquanto me ocorriam rifões do tipo “pela boca morre o peixe” e “bem prega Frei Tomás”. Mas claro que num discurso improvisado a língua nos prega partidas. Agora, quem escreve e tem, geralmente, todo o tempo do Mundo para pensar no que põe no papel, não pode invocar quaisquer desculpas – a não ser a ignorância - para maltratar o nosso belo idioma. E se com a nossa língua materna surgem percalços deste género, imagine-se o descalabro que é quando tentamos fazer-nos entender em “estrangeiro”! No entanto, a bem da sanidade mental dos meus prezados leitores, isso já será uma outra história…
----------------------- Por : J. Moreira Silva (1ºTEN) - In Revista Da Armada